Título: Vidas provisórias
Autor: Edney Silvestre
Editora: Intrínseca
Ano: 2013
Nº de páginas: 240
“Cada parte do seu corpo doía, cada uma de forma diferente. Nunca imaginou que fosse possível sentir tanta dor. Uma mais aguda, outra mais penetrante, outra ardente, outra mais ardente ainda, junto a muitas, a todas as pequenas dores que se reuniam para fazer de seu corpo uma dor única.” (p. 19)
Edney Silvestre usa e abusa de seus onze anos de experiência como correspondente em Nova York, a serviço da TV Globo, para revelar nas páginas de Vidas provisórias o universo dos imigrantes enquanto recria um Brasil visto de longe com muita sensibilidade e sem rodeios para cutucar determinadas feridas abertas no decorrer da nossa história.
Nesse terceiro romance do autor, acompanhamos os personagens Paulo e Barbara, que apesar de estarem separados no tempo e na geografia, compartilham a experiência do exílio e seus principais impactos, como o isolamento, a perda de identidade, as incertezas e a sensação permanente de que o curso normal de suas vidas foi interrompido.
Um detalhe curioso é que não são figuras inéditas na trajetória literária de Silvestre. Paulo apareceu pela primeira vez em Se eu fechar os olhos agora, lançado pela Editora Record em 2009 e vencedor do Prêmio Jabuti de melhor romance e do Prêmio São Paulo de autor estreante, ambos em 2010. O livro também ganhou uma adaptação em formato de minissérie para o Globoplay em 2018, com dez episódios, e chegou à TV aberta no ano seguinte. O personagem foi interpretado por João Gabriel D’Aleluia e Milton Gonçalves em diferentes fases.
Já Barbara esteve no romance político A felicidade é fácil, lançado em 2011 também pela Editora Record. A sinopse revela que, ao contrário do livro de estreia do autor, em que há certa inocência na narrativa por ser do ponto de vista de dois adolescentes, dessa vez “ingressamos na era do cinismo, do despudor, do salve-se quem puder” que se instalou no país durante o conturbado governo Collor.
Em Vidas provisórias, somos transportados inicialmente para 1970 e vemos Paulo lutando pela sobrevivência. Ele sente na pele os horrores da ditadura militar (como mostra o trecho que abre esta publicação) e é largado à própria sorte na fronteira sem documentos. Consegue entrar no Chile e depois parte para a Suécia, onde se apaixona por uma militante da Anistia Internacional chamada Anna, com quem constrói uma família.
Na sequência, viajamos no tempo e desembarcamos em 1991, quando começa a história de Barbara. Ainda adolescente, ela deixa o país com uma identidade falsa e passa a viver como imigrante ilegal nos Estados Unidos. Trabalhando como faxineira e manicure, convivendo com uma rede de prostitutas brasileiras, sem saber falar inglês e sob medo constante de ser descoberta, sua luta é continuar sendo apenas mais um rosto estrangeiro na multidão.
“Os vizinhos falam alto, mas hoje a algazarra é maior. Devem estar recebendo parentes e amigos, ela imagina, quieta em seu apartamento de quarto e sala conjugados, cozinha e banheiro. É isso que as pessoas fazem nesta data, não é mesmo? Era assim que sua avó fazia nos Natais.” (p. 77)
Um ponto que merece destaque é o projeto gráfico do livro. Para os capítulos de Paulo, foi usada a cor preta, que transmite objetividade, praticidade, algo menos contemplativo. Além disso, a caixa de texto parece espremida nos cantos externos da página, dando a sensação de aperto e confinamento. Essa proposta combina com os espaços insalubres onde o personagem sofreu tortura física e psicológica.
Por sua vez, os capítulos sobre Barbara trazem a cor azul, associada à melancolia, à memória e à introspecção. A escolha caiu como uma luva, pois tem tudo a ver com o tom mais frio que prevalece na narrativa. Há ainda o detalhe da grande área em branco na parte inferior das páginas, funcionando como metáfora visual de uma existência incompleta, interrompida pelas circunstâncias. Um vazio que acompanha a personagem.
“Aqui, em Portugal, na Itália, na Argélia, na França, no México, na Alemanha, na Inglaterra, tanta gente desenraizada, a ouvir línguas estrangeiras todos os dias de todas as semanas, de todos os meses, longe do Brasil, a falar mal e com sotaque línguas estrangeiras, tanta gente sem saber quando volta para o Brasil, sem saber sequer se um dia volta para o Brasil.” (p. 168)
Dias antes de escrever este post, descobri que o autor não gostou do resultado de Vidas provisórias. A insatisfação só cresceu no decorrer dos anos, a ponto de ele decidir reescrever o livro. A nova versão foi lançada em 2021 pela Globo Livros, com dois capítulos inéditos e mais de cem páginas adicionais. Ou seja, praticamente outra obra.
Os ajustes, segundo o próprio Silvestre, foram para melhorar a contextualização de determinadas passagens, detalhar mais a trajetória de alguns dos personagens e tornar certos trechos mais fluidos. Agora que li a primeira versão, concordo com ele. Poderia ter explorado mais as conexões dos protagonistas expatriados com as pessoas e os lugares que eles conhecem nos respectivos países de destino.
“Somos a família separada mais unida que conheço. Fica melhor dito assim.” (p. 223)
Considero a construção de Paulo mais sólida, mas estou ciente também de que esse julgamento pode ser tendencioso. Afinal, por ter lido Se eu fechar os olhos agora, já conhecia várias camadas dele. Como ainda não li A felicidade é fácil, não nutri o mesmo grau de empatia por Barbara, até então uma completa desconhecida para mim. Porém, isso não necessariamente significa que seja uma personagem desinteressante.
Entre erros e acertos, achei a leitura muito prazerosa. Silvestre tem uma escrita envolvente e cria personagens que parecem reais, saídos do nosso bairro. Todos nós temos um pouco de Paulo e Barbara. Queremos sentir que pertencemos a um lugar, desfrutar do direito de ir e vir, encostar a cabeça no travesseiro à noite e adormecer sem medo.
E aí, quem já leu Vidas provisórias? Foi a primeira ou a segunda versão? Comentem o que vocês acharam.





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